- VALORIZANDO MOMENTOS
Uma análise interessante quando
se viaja com certa regularidade é comparar a perspectiva de interesses no
planejamento da ida com a quantidade de lembranças da volta. Normalmente
planejamos uma viagem baseado no que pretendemos ver e conhecer, incluindo paisagens,
monumentos, museus. Mas quando retornamos, nossas melhores histórias não
envolvem lugares.. Envolvem pessoas. Basta prestar atenção naquele papo de bar,
junto com a família ou com a turma. Quando vamos contar algo interessante de
uma viagem, normalmente o núcleo da narrativa está numa situação que envolve as
pessoas do lugar visitado. Esta é uma dica para quando planejar uma viagem.
Considere não apenas os lugares bonitos que irá conhecer, mas as
características e a cultura do povo com quem irás conviver. Neste núcleo
estarão nossas melhores histórias. Neste sentido, um dos lugares mais
impressionantes que conheci foram os Templos da Civilização Kmer, no Camboja,
incluindo o Templo de Angkor Vat. Estes monumentos religiosos impressionam pelo
seu tamanho e estilo arquitetônico. Mesmo diante disso, sempre que me perguntam
sobre o Camboja, a história que conto não envolve os templos, mas a figura
isolada de uma velha senhora. Quando chegava ao Templo de Angkor Tom, após uma
caminhada na floresta, percebi uma senhora idosa, sentada no chão, na entrada
do templo, vendendo aquelas famosas “lembrançinhas made in China” que
proliferam em todo lugar. Após uma hora de passeio, na saída, percebi que a
senhora estava no mesmo lugar, na mesma posição e aparentemente com os mesmos
objetos expostos, resultado de um programa de vendas não bem sucedido. Aproximei-me
e percebi que ela vendia aquela inutilidade que são os ímãs de geladeira. Após
uma certa dificuldade de comunicação, mesmo sem saber direito quanto iria pagar,
peguei dois exemplares e dei-lhe uma nota de cinco dólares. Neste momento ela
afastou uma espécie manto que a cobria e tentou pegar uma pequena bolsa para me
dar o troco. Só então percebi que ela não tinha nem as mãos e nem os pés, que foram
amputados. Descobri mais tarde que se tratava de uma das centenas de vítimas de
minas terrestres que existem no Camboja, que literalmente tem seus membros
explodidos, de forma cruel e aleatória. Isto ocorre principalmente com simples agricultores,
quando estes estão trabalhando no campo. Voltando a cena, acho que fiquei
alguns minutos olhando para ela, com os dois cotos de antebraço, segurando meu
troco. E neste curto espaço de tempo pude perceber aquele rosto envelhecido,
não só pelo tempo, mas também pela dor.. e sentir aquele olhar perdido que
fulmina nosso coletivo de queixas simplórias e vaidades diárias inúteis. Não
sei quanto dinheiro tinha na carteira. Certo que não era muito, mas rapidamente
lhe dei todo o que tinha e peguei o saco de ímãs de geladeira. Conversando
depois com o guia local, ele narrou que esta é a vida de muitos mutilados de
minas. Sem previdência social ou ajuda governamental, a rotina da sobrevivência
é passar o dia todo sentado, diante de um templo fantástico, vendendo quinquilharias
chinesas para turistas desatentos. Incrível como a imagem daquela mulher está
presente nas lembranças daquela viagem, e como ela participa de todas as
conversas sobre o Camboja. Lembro que o templo Kmer era magnífico, mas lembro
mais dos detalhes das mãos e pés ausentes do que da decoração de suas paredes. Ainda
tenho vários ímãs de geladeira chinês, comprados no Camboja, que costumo
presentear aos amigos, em situações especiais. Infelizmente os que ganham este
presente não entendem o seu significado.. E a sua representação.. E isto também
não é justo com aquela senhora.. Aliás, nada na vida parece ter sido justo com
ela.. E como em quase todas as viagens, mais uma vez são as “pessoas” que dão
significado aos lugares.